Pannunzio Comunicação – Blog do Pannunzio

Relembrando: como o editor deste blog descobriu o paradeiro de PC Farias há 19 anos

Foram 45 dias de uma caçada impressionante ao final dos quais o País ainda se perguntava como o homem de ouro do governo Collor havia conseguido desaparecer sem deixar vestígios. A investigação do paradeiro de PC Farias mobilizou um contingente enorme de agentes federais e até a interpol foi acionada.

Em todo o Brasil, pipocavam notícias do surgimento e posterior desaparecimento do tesoureiro particular do ex-presidente impedido. Houve relatos de que ele estava no interior da Bahia, em Catalão (GO), num fazenda em Alagoas, próximo à fronteira entre o Paraná e a Argentina, e em diversos outros locais onde PC Farias jamais havia sequer visitado.

Em agosto de 93, recém-chegado à Rede Bandeirantes, fui designado para a cobertura da posse de Juan Carlos Wasmosy na presidência do Paraguai. Era um evento político muito importante. Marcaria a reinstitucionalização do país vizinho.

A posse ocorreu no dia 15 de agosto. Praticamente todos os jornalistas brasileiros que acompanhavam o presidente Itamar Franco se hospedaram num hotel do centro de Assunção, capital do Paraguai, onde cheguei na véspera da posse.

Há um axioma segundo o qual repórter tem que ter sorte. Naqueles dias, a sorte estava comigo.  Começou a se manifestar na mesa de black-jack de um cassino barato, onde entrei apenas com um convite de boas-vindas oferecido pelo hotel e saí com 180 dólares uma hora mais tarde para custear a primeira farra dos colegas de cobertura.

Acordamos cedo. Às seis da manhã, o refeitório do hotel já estava lotado de jornalistas brasileiros. Líamos, entre um gole e outro de café, o jornal ABC Color, que na época era o mais respeitado da capital paraguaia.

Num pé de página do primeiro caderno, uma nota estranha, quase do tamanho de um anúncio classificado, estampava o título em letras minúsculas: “PC  en Asunción”. O texto, de apenas três linhas, informava que um certo PC Farias havia passado por Assunção, onde chegara em um pequeno avião.

Todos os enviados leram aquela nota. Zombaram da informação, que parecia ter sido plantada apenas para atiçar a comitiva brasileira. Era a mesma coisa que se repetia em vários lugares do Brasil: balela!  Ninguém lhe deu atenção. Eu dei.

Ainda antes da sete horas da manhã, liguei para o meu chefe, José Occhiuso, para falar sobre aquela informação. Era domingo, e Occhiuso ficou irritado por ter sido acordado em plena madrugada de um de seus raros dias de folga. Recebi instruções para não me desviar da cobertura da cerimônia. E decidi desobedecê-lo, mas não comuniquei isso a ele.

Abandonei a comitiva e segui com o cinegrafista Lúcio Matildes Alves para a sede do ABC Color. Ficava no centro da capital, não muito longe do hotel. A redação ocupava uma loja retangular extensa e escura,  com dezenas de mesas equipadas com máquinas de datilografar e cinzeiros transbordando bitucas de cigarro. A loja, no entanto, estava completamente vazia.

Avistei lá no fundo, dentro de um aquário, um senhor solitário. Era Aldo Zucolillo, o dono do periódico, que já havia despachado toda sua equipe a cerimônia de posse. Apresentei-me a ele. Estava apressado e impaciente, sem disposição para conversas demoradas. Perguntei-lhe por que havia publicado aquela informação.

– “Porque me deram isso aqui”, disse ele, sacando da gaveta a fotocópia de um plano de voo. No documento apareciam quatro nomes. O de PC Farias fora grafado como “Cavalcante, Pablo”. Jorge Bandeira, que desaparecera junto com ele, foram nominado “Melo, Jorge”. O terceiro nome era o do piloto do bimotor contratado para a fuga. O quarto, o de um personagem até então desconhecido, José Ramón Irribarra Moreno. Dois anos depois, ele me levaria até Jorgina de Freitas Fernandes, outra fugitiva da justiça brasileira, na Costa Rica.

Perguntei a Zucolillo por que, diante da importância de uma informação como aquela, o jornal não havia investido no assunto, colocado na manchete do alto da primeira página. Ele redarguiu que não o povo paraguaio não sabia de quem se tratava PC Farias, que não se interessaria pelo assunto, uma vez que seu País era o destino de quase todos os “prófugos” do continente.

Pedi, então, que ele me desse uma cópia do documento. Para minha surpresa, Zucolillo devolveu o plano de voo à gaveta. E me dispensou dizendo que tinha mais o que fazer. Tentei insistir. Argumentei que o assunto merecia uma apuração mais extensa. Expliqui-lhe a importância que a informação tinha para os brasileiros. Ele encerrou a conversa dizendo que, se eu quisesse mesmo mostrar o documento, que o reproduzisse da primeira página da edição do dia seguinte.

Fiquei morto de raiva. Saí de lá frustrado. Não tinha como checar a procedência nem a veracidade daquele plano de voo. O único caminho para uma verificação preliminar era o número da identificação apresentada por PC Farias, que eu havia guardado na memória. Quando percebi que não conseguiria convencê-lo a me ceder uma cópia do plano, li e repeti mentalmente três vezes aquele número. Ao deixar a redação do ABC Color, anotei no meu bloco e liguei para o Brasil.

Ainda não eram oito horas da manhã. Acordei Antonieta Goulart, minha diretora na sucursal de Brasília. Contei-lhe o que aconteceu. Ela ficou muito entusiasmada com a história. Passei-lhe os algarismos que havia anotado sem saber dizer se aquela era um número de passaporte, carteira de identidade ou uma fantasia qualquer criada pelos fugitivos. Pedi-lhe que contasse com jeito ao José Occhiuso que eu havia desobedecido a ordem. Mas ela achou melhor não dizer nada e se pôs a providenciar com a Radiobrás  as imagens que eu e o Lúcio não estávamos registrando.

Antonieta acordou Romeu Tuma. Muito diligente, o ex-Diretor da Polícia Federal prometeu checar a informação e, com toda a discrição, devolver o que conseguisse confirmar.

Enquanto isso acontecia em Brasília, fui até o Aeroporto de Assunção na expectativa de encontrar o avião que tirou PC Farias do Brasil. Não lembrava o prefixo. Mas sabia o nome de pista do piloto que havia preenchido o documento.

Ocorre que o aeroporto estava praticamente deserto. Não havia ninguém para informar nada. Todos no Paraguai estavam mobilizados para a posse. Era domingo e, além disso, feriado cívico. Andei por onde quis até encontrar a sala de tráfego. Ali havia um oficial de dia. Apresentei-me como piloto brasileiro e pedi para ver o arquivo dos planos de voo.

Ele me encaminhou até uma sala contígua, onde havia armários de aço marrons com milhares de documentos iguais àquele que Zucolillo trancara na gaveta. Estavam organizados por data. Em menos de dez minutos. encontrei documento original. Surrupiei uma cópia (havia duas vias no arquivo), agradeci ao soldado e fui embora.

Às três e meia da tarde, Antonieta ligou para o Occhiuso contando da nossa descoberta. Ela havia acabado de receber de Tuma a confirmação de que o número que lhe passara era o do RG de PC Farias. Occhiuso ficou irritado com a “armação”, mas logo esqueceu o assunto e passou a tomar providências para receber o material que eu geraria. Fui para uma televisão que o ele contratou para editar e gerar o material.  Mas duas letras, duas míseras letras trocadas, quase acabam com o nosso furo: M e N.

Nos anos 70, quando a TV em cores começou a ser implantada na América do Sul, o “nacionalismo” dos militares e as desconfianças entre os ditadores vizinhos fizeram com que cada república do continente adotasse um sistema próprio de televisão.

O Brasil  adotou um híbrido , o PAL-M, derivado do  PAL alemão, com a definição e a frequência do norte-americano NTSC  — 625 linhas e 60 Hz. O Paraguai e a argentina optaram pelo PAL-N, com 50 Hz. de frequência e 525 linhas de definição vertical.

A tradução dessa sopa de letras, números, sistemas e padrões é que o nosso equipamento não conversava com o deles. A TV não tinha conversores. Exatamente como ocorria no Brasil, as emissoras paraguaias eram proibidas de trafegar sinais em qualquer outro padrão. A restrição era tratada como assunto de segurança nacional .

As imagens que víamos nos monitores da ilha de edição eram lentas e deformadas. O áudio havia se transformado numa trilha gutural e ininteligível. O máximo que conseguimos fazer foi reproduzir as imagens em um pequeno monitor NTSC — portanto sem cores –, filmar a tela com uma câmera paraguaia e enviar ao Brasil um material quase inaproveitável.

Não sei o que o Occhiuso fez para editar aquilo. O áudio foi gravado por telefone. A passagem que fizemos foi para o lixo. Mas, em nome da importância da notícia, ate aquele borrão em que se transformaram as imagens do aeroporto onde PC chegara — e de onde partira dois dias depois —  valia. Importante mesmo era o fac-simile do plano de voo, que eu havia enviado por fax.

Meia hora antes da edição do Jornal de Domingo — naquela noite apresentado por Carla Vilhena –, a Band pôs chamadas no ar antecipando eu eu iria anunciar o paradeiro de PC Farias. Dois dia depois, ao encontrar-se comigo em Buenos Aires, a repórter Denise Rothenburgh, então em O Globo, me contou que os colegas viveram momentos de pânico desde que as chamadas começaram a ir ao ar. Exaustos pela cobertura da posse, atravessaram a madrugada tentando checar a informação.

O restante da história está descrito na reportagem que recuperei do Acervo Digital de Veja. Está publicada abaixo para quem se interessar em ler.

Há mais dois capítulos dessa história, mas não sou eu quem vai contá-los. Pedi à Denise que fizesse um texto sobre o que vivemos em Buenos Aires na sequência dessa descoberta. Uma cidade cheia de pessoas estranhas, policiais soturnos, fiscais corruptos e de galpões abarrotados de caixas de maçãs com informações preciosas.

Share the Post:

Join Our Newsletter