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Calúnia X Calúnia

Por Lúcio Flávio Pinto, em Cartas da Amazônia

“Em outro país, um jornalista com o meu passado não sofreria as calúnias”, lamenta-se Mino Carta na última edição da sua revista Carta Capital, respondendo aos ataques de que se declara vítima por parte dos jornalistas Fábio Pannunzio, Demétrio Magnolli e Reinaldo Azevedo.

A polêmica entre os três jornalistas e Mino está acesa e já tem bastante protagonista para dispensar minha participação. Mas esse lamento e o que Mino disse para justificar a invocação do seu nome como escudo motivam meu aparte na discussão.

Não há dúvida que o passado de Mino Carta garante sua inclusão na história do jornalismo brasileiro. Ele tem sido um dos melhores criadores de publicações da imprensa nacional. Há sua assinatura em produtos como a Edição de Esportes e o Jornal da Tarde, de O Estado de S. PauloVejaIstoé e a própria Carta Capital.

Excetuada a edição esportiva do Estadão, as outras criaturas forjadas em papel continuam em plena circulação. Atestam a capacidade do criador, apesar de seus eventuais escorregões, como no malfadado Jornal da República.

Nem por isso o seu passado é uma barragem intransponível pelas críticas ou um elemento mágico, capaz de transmudar de pronto restrições feitas a ele em calúnias prontas e acabadas. A história de Mino Carta o expõe e sujeita a essas críticas.

Ele é tão ciente desses flancos que uma de suas obsessivas preocupações é refazer e retocar a própria história, obra em permanente processo. Talvez acredite que tomando a iniciativa inibe os demais de se lançar sobre o seu passado. Confere-se direitos autorais plenipotenciários sobre si, sem contemplação, sem qualquer alternativa.

Mino Carta exige respeito ao seu passado enquanto viola o passado dos outros. Numa das suas frases mais infelizes, desafia seus caluniadores a se manifestarem “a respeito de quem na mídia brasileira se perfilava illo tempore ao lado da ditadura. Ou seja, quase todos”.

Enquanto quase todos se submetiam à ditadura, Mino Carta era o guerreiro quase solitário a enfrentar os censores e outros avatares, mantendo sua trincheira inexpugnável contra os ataques das feras. Mal informados sobre esse passado, as pessoas de hoje acham “que a censura foi ampla, geral e irrestrita”, quando, na verdade, foi facilitada pela subserviência de quase todos os jornalistas.

Muito menas verdade, doutor Mino.

Não é verdade que o retumbante fracasso da edição inaugural de Veja, datada de 11 de setembro de 1968, tenha derivado da sua capa, com a foice e o martelo do comunismo em negro sobre fundo vermelho, que “já irritou os fardados”. O subtítulo da matéria de capa foi “o grande duelo no mundo comunista”. Cabia como luva em qualquer publicação financiada nessa época pela CIA, a agência de inteligência dos Estados Unidos no embalo da guerra fria (para maiores informações, leia-se o livro “Quem pagou a conta?”).

Os leitores menos atentos imaginaram tratar-se de publicação ideológica inspirada pelo USIS (mas não abusis), o serviço de informação de Tio Sam, generoso e abundante. O texto da reportagem não ajudava a desfazer essa impressão. Resultado: encalhe de quase toda a edição. O mundo ainda vivia sob o halo da revolução dos joven. Foi preciso “refundar” a revista, conforme hoje se diz.

Prima dois anos mais velha do novo magazine, a mensal Realidade não conseguiu essa façanha. Lançada em 1966 pela mesma Editora Abril, a revista foi numa escalada de sucesso — de público e de crítica — quando baixou a tumba da liberdade, o AI-5, em 13 de dezembro de 1968. A cabeça deRealidade, esta, sim, muito irritante aos centuriões do poder, foi oferecida na bandeja ao regime.

Veja prosseguiu e sobreviveu: uma concessão ali, um avanço acolá, jeitinho num dia, sujeição no outro, conforme foi possível e permitiam as negociações de bastidores entre alguns personagens menos teratológicos do poder militar e atores mais hábeis do poder desarmado. Mas não só Mino, grande jornalista que nunca foi ao front, mantendo-se sempre na estratégica e lúcida retaguarda. Outros interlocutores também contornaram impasses que salvaram Veja e sacrificaram Realidade.

Ser personagem dessas tratativas ocultas em nada favoreceu Mino na reconstituição dos fatos, muito pelo contrário. Ele é o herói impoluto em todos os momentos, que podem ser traçados conforme um AM e DM (antes e depois de Mino). Após sua passagem, um território arrasado. Com ele, seguiram as joias da coroa para a nova empreitada. Depois dele, a desolação.

É com esse enredo que lega aos mais novos, que acorrem desinformados às suas brilhantes palestras, sua passagem pelo jornal que só não foi mais influente ao longo da república brasileira do que o carioca Correio da Manhã. Vítima dos facínoras do poder armado e de uma esquerda inconsequente, o Correio chegou melancolicamente, em 1974, ao fim da trajetória marcante iniciada em 1901,.

Mino Carta tem a coragem de afirmar no seu artigo que o Estadão, primeiro, e o Jornal da Tarde, em seguida (quase que por efeito gravitacional), foram punidos pelo governo militar com a censura na redação como resultado “de uma briga em família. O jornal apoiara o golpe, mas sonhava com a devolução do poder a um civil, desde que se chamasse Carlos Lacerda”.

Essa fantasia tem o propósito de revelar ao distinto público que resistência à censura — heroica e digna — foi a de Veja, sob a batuta de Mino; porque a do Estadão, de onde ele já saíra, por rompante de indignação, era motivada por interesses menores — e nada republicanos, como hoje também se diz.

Novamente não é verdade. O grande conspirador foi Júlio Mesquita Filho, que se tornou um autêntico revolucionário (ou contrarrevolucionário, as expressões são utilitárias no Brasil), impulsionado pelo ódio a Getúlio Vargas, sentimento partilhado por seu amigo e ídolo Carlos Lacerda. É bem provável que o “doutor Julinho” tenha escrito o editorial “Instituições em frangalhos”, através do qual reagiu com todo vigor ao AI-5, provocando a censura ao jornal, com esperanças ainda em Lacerda.

Mas logo depois ele morreu (em 12 de julho de 1969) e quem o substituiu foi o filho mais velho, Júlio Mesquita Neto, e não aquele que se achava mais preparado para assumir a condução editorial do porta-voz da plutocracia paulista. Foi Ruy Mesquita quem seguiu a filiação do pai a Lacerda, mesmo depois que o ex-governador carioca foi cassado, sua Frente Ampla não deu certo e ele só saiu do arquivo morto para dar um memorável Testemunho a repórteres do Jornal da Tarde, o vespertino que restou a Ruy (o livro, publicado em 1978, é lido com proveito mesmo por quem detesta Lacerda).

Júlio Neto não partilhou essas ideias. Ciente de que a sucessão, se tivesse que seguir a lógica da história e não a cronologia da família, caberia ao irmão mais novo, fopi atrás da própria biografia. Enfrentou a censura como nenhum outro dono de jornal a partir do AI-5. Com seu apoio e, às vezes, o seu estímulo, dezenas de jornalistas em todo país reagiram não só à censura na redação, mas ao próprio regime pelo país afora. Com coragem, alto espírito público e refinado profissionalismo. Sem nunca vergar a coluna. Sem salamaleques com os tiranos do dia ou do local. Sem papos de Settembrini com Naphta, como em A Montanha Mágica, de Thomas Mann

É a eles todos (em nome dos quais homenageio um dos maiores de todos, Raul Martins Bastos) que Mino Carta ofende com mais uma das suas frases espirituosas e falsas. Tão falsa quando ele intitular o primeiro Mesquita como o fundador do Estadão. Uma simples consulta o levaria a verificar que Júlio Mesquita só assumiu a direção do jornal, ao qual chegara dois anos antes, levado pelas mãos do sogro (e pelo capital do pai), 16 anos depois da fundação da então A Província de São Paulo, em 1875.

Calúnia paga com calúnia não é jornalismo, doutor Mino. Não é nada.

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