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As vestes de Antístenes

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A Família Simpson encantada com o idioma universal de Francisco em Aparecida, SP

Ateus como eu têm uma enorme dificuldade para admitir alguma simpatia por líderes religiosos. Mas preciso começar esse texto fazendo uma confissão: esse Papa Francisco me encanta!

Soou estranho para você ? Pois para mim também! Afinal, os dogmas religiosos, os vícios vaticanos, o reacionarismo doutrinário e as restrições de caráter moral estão todos encarnados nele, Francisco.

Ainda assim, o Papa encanta. Não pelas ideias que defende, posto que são as mesmas desde o Concílio Vaticano II, nem pelo enigma que ainda representa quanto ao papel político da instituição que preside. A Igreja Romana ainda está muito mais próxima da Idade Média do que da pós-modernidade.

Mas vá lá: as missas já não são mais celebradas em latim, como há 50 anos, e os padres — esta, no campo simbólico, talvez tenha se transformado em sua maior virtude — não estão mais voltados para o altar e de costas para os fiéis. É o que o pontífice argentino deixa claro com sua postura humildade, o despojamento e a fala tranquila que faz o idioma de Cervantes soar familiar aos ouvidos dos legatários de Camões.

Nas redações das empresas jornalísticas, especialmente de emissoras de rádio e televisão, há um debate infindável sobre o o uso de palavras que não fazem parte do espartano vocabulário de uso corrente, um coleção de supostos 50 vocábulos além dos quais não se pode avançar no texto de uma reportagem. Qualquer palavra que não esteja inserida nesse limitado universo de suposições léxicas convencionadas conspurcaria a inteligibilidade do texto e faria com que as pessoas se desconectassem da mensagem e do canal por onde ela escoa.

Trata-se de um sofisma construído a partir da lógica impositiva de que fornecer pérolas linguísticas aos porcos-telespectadores produziria uma fuga da audiência, agora armada com fulminantes controles-remotos. Foi sacramentado nas primeiras edições de alguns manuais de telejornalismo e encontrou sua metáfora máxima na ignorância abissal do personagem Hommer Simpson, utilizado por William Bonner como símbolo da capacidade intelectiva dos telespectadores do Jornal Nacional.

A falácia sobrevive até hoje. Todos os dias, em qualquer redação brasileira, algum editor chama o repórter às favas para comunicar que certas palavras ou expressões não podem ir ao prelo. Vou citar um exemplo. Abrir uma reportagem com uma citação shakespeariana, não pode. Mesmo que a citação seja algo universalmente conhecido há séculos e que tenha sobrevivido ao passar do tempo.

Tente abrir uma matéria usando o clássico “há mais coisas entre o céu e a Terra do que supõe a nossa vã filosofia”. Ainda que a reportagem verse sobre problemas da aviação, o sábio sempre dirá ao repórter que “as pessoas não vão entender o que você está querendo dizer com isso”. Não importa que a frase em questão tenha sido cunhada por William Shakespeare há séculos e que Machado tenha dela se valido para abrir “A Cartomante”, que todos deveríamos ter lido no colegial.

A guarda pretoriana da ignorância linguística enxerga a palavra como um símbolo constituído de sentido estrito, e não como elemento constituinte (parte) do sentido contextual (todo) que se forma como mensagem. Prefere enxergar a parede (mensagem) como um conjunto de tijolos (palavras), e não os tijolos como meros elementos conformadores da parede, muitas vezes escondidos por trás de uma sólida camada de argamassa do pensamento hegemônico em um determinado momento da história. Ainda que sejam diferentes entre si, os tijolos das palavras, sejam quais forem suas cores e componentes, só vão ganhar sentido quando formarem uma parede.

Mas o que o Papa Francisco tem a ver com isso ?

No Brasil, em público, o Papa prefere usar o espanhol, sua língua nativa. “Eu não sei falar brasileiro”, disse ele em Aparecida ao abençoar os fiéis. “Por isso vou falar argentino”, deveria ter dito em seguida, quando anunciou que iria se dirigir à multidão em espanhol. O que importa, para a argumentação proposta neste post, é o esforço de Francisco para se fazer entender. Na ausência de outras ferramentas, apelou à proximidade entre os dois idiomas e deu seu recado.

As pessoas entenderam esse recado ? Sim, entenderam. E qual é o recado ? “Eu sou um cara simpático, pareço o avô bonzinho de vocês e tenho um coração acolhedor”. Foi isso o que o Papa disse ? Não, não foi. Mas foi o que as pessoas, mesmo aquelas para quem o espanhol de Bergoglio soa tão estranho quanto o sueco ou o alemão, compreenderam ao final. O que mais um Papa precisa dizer ? Nada, desde que queira aproximar o rebanho do pastor!

Vamos tomar aqui outro exemplo. O povo sai às ruas, depreda alguns bens públicos e pede menos roubalheira no governo. A presidente entende que as pessoas querem reformar a Constituição para que o partido dela se dê bem com o financiamento publico das campanhas eleitorais. Ela diz, também, que está ouvindo as vozes das ruas. Está mesmo ? Não, não está. Mas o povo, esse mesmo cujo ícone é Hommer Simpson, entendeu que a presidente não entendeu nada. Em resposta, como que para demonstrar que não é tonto como querem fazer crer os que menosprezam sua capacidade de compreender a realidade, provoca uma inflexão gigantesca na curva de aprovação da presidente espertalhona. Inflexão, não: reversão!

Quem será que é o bobo aqui ?

Certamente não é Chico nem Francisco. Chefe de uma organização multissecular planetária, Francisco  é um homem muito carismático e nada convencional. Ele beija crianças, abraça os fiéis, fica preso em congestionamentos com o vidro aberto. É capaz de fazer a presidente do maior País católico do mundo parecer uma adolescente ansiosa ao escolher palavras e frases certas para compor um discurso que, contraposto ao dela, constitui um libelo à simplicidade. “Os buracos nas suas vestes afrontam minha humildade”, poderia ter parafraseado Dilma ao saudá-lo, numa alusão ao diálogo entre o mestre Sócrates e o discípulo Antístenes, o primeiro dos cínicos (Jesus, segundo algumas fontes, era a personificação da corrente filosófica do cinismo de Antístenes).

O que o Papa está fazendo ? Está se revestindo de legitimidade e ganhando posições no campo do afeto para defender as mesmas teses de sempre — a manutenção do celibato, a condenação ao uso da camisinha etc etc. Tudo isso vai ficar mais claro quando seu pontificado tiver amadurecido. Até lá, terá tido tempo e sabedoria para se fazer querido. E, como todos sabem, é muito mais fácil aceitar o pensamento adverso das pessoas que amamos do que o daquelas que não suportamos.

A próxima pergunta a encadear essa série de argumentos é: ‘Mas se o povo mal entende as cinquenta palavras do glossário da ignorância presumida, como pode entender a fala enrolada de Francisco em outro idioma ?’

Simples. Francisco não fala só com palavras. Soa muito mais eloquente aquela cara de bobo, aquela passividade quase irritante, o sorriso largo sempre estampado no rosto, do que um milhão de palavras soberbas lançadas ao vento para sublimar o que não é conveniente dizer. Sua linguagem é gestual. São os vincos em seu rosto que criam os vínculos de empatia.

Os políticos brasileiros, que a esta altura devem estar invejando a súbita popularidade do Papa, têm muito a aprender com o pontífice. Mas antes de qualquer outra coisa, precisam vestir a túnica remendada de Antístenes em vez de se sentirem ultrajados por seus andrajos. Só assim se poderá ver seu orgulho através dos buracos da túnica.

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