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Maconha: descriminalizar ou não?

FERNANDA MENA E CLAUDIO ANGELO, da Folha de São Paulo

O ANO DE 2010 é especialmente fértil no debate sobre a maconha. No Brasil e no mundo, começam a pipocar pesquisas e iniciativas políticas para refundar a discussão em termos científicos e jurídicos mais modernos.
Um novo estudo científico foi publicado no Reino Unido e se impôs como referência tanto para os proibicionistas quanto para os ativistas pró-legalização -o “lobby da proibição” e o “lobby da maconha”, como ambos se apelidaram mutuamente, vão debater o tema no auditório da Folha, em 21/10.
Três ex-presidentes do Brasil, do México e da Colômbia, países que enfrentam graves problemas com o narcotráfico, pediram mais ciência nas políticas sobre drogas ilícitas. Na ocasião, um deles, Fernando Henrique Cardoso, declarou que “a guerra às drogas falhou” e que as atuais políticas de proibição precisam de “uma revisão transparente”.
Na semana passada, em Genebra, Fernando Henrique acenou com a possibilidade de internacionalizar a proposta. “De fato, estamos cogitando criar uma nova comissão para tratar da questão das drogas, agora com abrangência global”, revelou à Folha. “Também estarão nela os três presidentes que participaram da primeira comissão, juntamente com outras personalidades internacionais.”
Em novembro, na Califórnia, um plebiscito votará um novo estatuto legal (e fiscal) para a maconha, que poderá passar a ser tratada como o álcool e o tabaco. Ao mesmo tempo, Portugal completa dez anos de descriminalização do uso de todas as drogas, sem registrar explosão do consumo.
No Brasil, além da defesa de uma ideia custosa do ponto de vista político feita por FHC, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas, ligado à Presidência da República, se prepara para votar a proposta da criação de uma agência nacional para pesquisar o uso medicinal da maconha. E uma guerra de artigos de cientistas e cartas de leitores na página 3 da Folha ajudou a pôr o debate em pauta.
Qual dos males é o menor: o prejuízo à saúde causado pela fumaça ou os danos decorrentes da proibição? Quando o assunto é maconha, não é fácil separar o trigo científico do joio ideológico.

QUINTAL Para evitar os danos decorrentes da proibição, o músico carioca Pedro Caetano, 29, decidiu cultivar em seu quintal, no bairro de Engenho do Mato, em Niterói, alguns pés de Cannabis sativa, erva da família das canabáceas, nativa da Ásia, de folhas compostas, finamente recortadas, serreadas, inflorescências axilares e frutos aquênicos arredondados, conforme ensina o dicionário Houaiss.
Os “danos decorrentes”, no caso de Pedro, não são probabilidades ou conjecturas teóricas. Depois de ter o pai assassinado por traficantes em Vila Isabel, zona norte do Rio, em 2004, o baixista da banda de reggae Ponto de Equilíbrio viu no cultivo para consumo próprio uma forma de não se envolver com o tráfico. Ele tinha dez pés da planta. “Aquela colheita daria para o ano todo.”
Em 9/7, Pedro foi algemado e levado para a delegacia. Passou 14 dias preso. Chegou a dividir cela com 70 pessoas, sem chinelo, camisa nem banho de sol, até conseguir convencer a Promotoria de que é usuário e não traficante.
Ao saber da prisão do companheiro de banda, o baterista Lucas Rehen telefonou para seu irmão Stevens, professor de neurociência na Universidade Federal do Rio de Janeiro e um dos principais especialistas em células-tronco do país. Este procurou outro expoente da pesquisa científica brasileira: Sidarta Ribeiro, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, cofundador do Instituto de Neurociências de Natal.
Rehen, Ribeiro e outros dois diretores da SBNeC (Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento), João R.L. Menezes e Juliana Pimenta, redigiram um manifesto pela revisão do status legal da maconha no Brasil que teve trechos publicados em reportagem da Folha. O argumento central é de que “a política proibicionista é mais deletéria do que o consumo”.
Pela primeira vez, pesquisadores de renome adotaram uma posição política sobre a droga, em nome de uma sociedade que representa 1.500 cientistas.

LOBBY VS. LOBBY A reação à carta dos neurocientistas não demorou. Em artigo também publicado na Folha, em 22/7 (“Maconha, o dom de iludir”), Ronaldo Laranjeira e Ana Cecilia Marques, psiquiatras do Inpad (Instituto Nacional de Políticas sobre Álcool e Drogas), publicaram um texto em tom igualmente politizado. Alertaram para o “dom de iludir” da erva e para os danos à saúde causados por seu uso recreativo, valendo-se do estudo “Cannabis Policy – Moving Beyond Stalemate” (“Política para a Cannabis – Superando o Impasse”), recém-publicado pela Oxford University Press. Apontaram também a falta de conclusões de estudos sobre o uso medicinal da maconha.
Em 30/7, os neurocientistas voltaram à carga em novo artigo na Folha (“Ciência e fraude no debate da maconha”), apontando a “fraude” dos adversários, que teriam omitido a conclusão de “Cannabis Policy”. Embora reconheça os danos à saúde, o estudo é favorável ao fim da proibição, para que seu uso possa ser regulamentado e seus danos controlados, como acontece com o álcool e o tabaco.
O artigo aponta o “poder medicinal” da droga, que teria alguns elementos “comprovadamente anticarcinogênicos”, e questiona o interesse de Laranjeira e Marques em defender a proibição de um “medicamento fitoterápico de baixo custo e sem patente em poder de companhias farmacêuticas”.
Seguiu-se nova troca de farpas entre o “lobby da maconha” e o “lobby da proibição”. O pesquisador Rafael Guimarães dos Santos, 29, entrou no debate e, na mesma página 3 da Folha, publicou em 22/9 o artigo “Falta ciência na discussão sobre a maconha”, apontando “imprecisões” nos argumentos científicos de ambos os lados.
Saiu abalado: uma troca de e-mails de enquadramento de Rafael foi se alargando progressivamente, da roda inicial de neurocientistas pró-Cannabis para outros pesquisadores e jornalistas científicos, até ir parar novamente na página 3 da Folha, desta vez no Painel do Leitor (em 24 e 29/9).
Sob pressão, Santos “retratou-se” da série de erros que afirma ter cometido e concluiu com o pedido: “O uso medicinal e não medicinal da maconha e de seus derivados deve ser legalizado”.

IPCC DO CÂNHAMO O revisionismo do status legal da maconha ganhou fôlego com a publicação do estudo “Cannabis Policy”.
Encomendado pela diretora da Fundação Beckley, a aristocrata britânica Amanda Feilding, a uma comissão de cinco especialistas, o relatório pretende fazer com a Cannabis o que o IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática) fez com o clima: vasculhar a literatura científica e traçar o estado da arte do conhecimento sobre o tema.
As conclusões não são animadoras para o proibicionismo: mesmo banida no mundo inteiro por uma convenção internacional desde 1961, a maconha foi usada por 4% da população adulta mundial em 2005, o que daria 160 milhões de maconheiros.
“A maconha é amplamente disponível e amplamente usada, então, se você quer argumentar contra o atual regime de proibição, ela é o melhor exemplo”, disse à Folha o criminologista australiano Peter Reuter, da Universidade de Maryland (EUA), coautor do relatório.
Reuter e colegas dizem que as políticas de proibição, draconianas ou liberais, têm “pouquíssimo impacto” na prevalência do consumo. A conclusão vai de encontro ao argumento de Laranjeira a favor do banimento -para o psiquiatra brasileiro, liberar a maconha faria o consumo explodir.
A comissão diz que a guerra contra as drogas, capitaneada pelos EUA, produz “amplas violações de direitos humanos”, especialmente contra jovens e minorias étnicas. Proibidas, as drogas geram um mercado negro que dissemina “corrupção, violência e colapso institucional” em países inteiros.
O relatório defende que os países tirem a maconha da Convenção Única sobre Narcóticos, de 1961, que instaurou a proibição global, e formulem suas próprias políticas para a erva. E arremata: “Parece desproporcional o dano social criado pela proibição diante dos danos da droga em si”.
Na balança em que se pesa dano social, de um lado, e dano à saúde, de outro, a dinâmica atual da ilegalidade da maconha dialoga com a experiência da proibição do álcool nos EUA, entre 1920 e 1933. O banimento do comércio de álcool em território norte-americano não cessou seu consumo nem diminuiu as taxas de doenças relacionadas a ele, como a cirrose. Além disso, a proibição consolidou uma rede de ilegalidades, violência e corrupção que chamamos hoje de crime organizado.
A maconha segue esse rastro. Se a proibição gera um mercado negro que promove seus negócios na base da corrupção e da submissão de populações vulneráveis, não se sabe quantas mortes estão associadas a doenças causadas pelo uso da substância.
Já o tabaco, comercializado legalmente no mundo inteiro, mata cerca de 5 milhões de pessoas por ano, segundo a última estimativa da Organização Mundial da Saúde (OMS).

NOVIDADE A publicação do estudo “Cannabis Policy” não deixa de ser uma novidade no contexto das pesquisas sobre o tema, cujos financiadores tradicionalmente as utilizam como instrumento político-ideológico.
O exemplo clássico é o das pesquisas bancadas, até os anos 1980, pelo Nida, o Instituto Nacional sobre o Abuso de Drogas, dos EUA. Braço científico do aparato antidrogas da Casa Branca, o Nida ficou célebre pelo financiamento de estudos que apontassem os malefícios da erva.
“Eles ajudaram a disseminar bobagens como a de que as propriedades farmacológicas da maconha induziriam as pessoas a usarem drogas mais prejudiciais e viciantes, como a heroína”, diz Renato Malcher-Lopes, professor de neurociência da Universidade de Brasília e autor de um trabalho sobre o sistema canabinoide.
Em 1990, cientistas israelenses descobriram que o sistema nervoso fabrica sua própria “maconha”: um conjunto de moléculas que ajudam na transmissão e modulação de impulsos entre os neurônios.
O receptor, ou “fechadura química” onde essas moléculas se encaixam, é um dos mais ubíquos no cérebro. “O sistema canabinoide endógeno está envolvido em cognição, emoção, percepção sensorial, coordenação de movimentos e na interface entre o sistema nervoso central e a fisiologia do resto do organismo”, explica. (Leia mais em folha.com/ilustrissima.)
Os resultados do “Cannabis Policy” são menos enfáticos ao abordar os danos ao usuário. Há indicações de que a maconha cause perda cognitiva, piore o rendimento e aumente a evasão escolar entre adolescentes e o risco de câncer de pulmão, e esteja relacionada a surtos psicóticos, esquizofrenia e infarto.
Estudos sugerem também que a erva serve como “porta de entrada” para outras drogas ilícitas, mas não é possível dizer se isso é efeito do tráfico ou de características psicológicas preexistentes.
“O dano agudo mais grave parece estar relacionado a dirigir ‘chapado'”, disse à Folha Peter Reuter, criminologista da Universidade de Maryland (EUA) e coautor do relatório. “Mas o risco de dependência é real.”

DEPENDÊNCIA Os estudos revisados pela comissão do “Cannabis Policy” sugerem que 9% dos usuários desenvolvem dependência química, número que sobe para 16% entre adolescentes. É uma taxa alta, mas modesta se comparada ao risco de dependência de outras drogas: 32% para o tabaco, 23% para a heroína, 17% para a cocaína e 15% para o álcool.
O tetraidrocanabinol (THC), o princípio ativo da droga, é bem tolerado pelo organismo: não reduz a taxa de respiração, nem tem efeitos tóxicos sobre o coração e o sistema circulatório. A dose letal em humanos vai de 15 g a 70 g. Um cigarro de maconha normalmente tem 0,5 g do composto. Até hoje, só duas mortes por overdose foram registradas em toda a literatura médica, mas não foi possível estabelecer se a culpa foi mesmo do THC.
O problema, diz Peter Reuter, é que não se sabe nada sobre os efeitos da droga no longo prazo. “Não há estudos em quantidade suficiente.” É irônico, mas a própria ilegalidade da droga impede a realização dessas pesquisas.
“Tenho falado com epidemiologistas que seguem um grande número de pessoas durante muito tempo, observando uma série de aspectos. E eles dizem que não perguntam sobre maconha porque seria desencorajador e algumas pessoas não participariam mais dos estudos”, afirma o criminologista. Sem esse tipo de acompanhamento, não dá para saber, por exemplo, qual é o risco de câncer para quem fuma há muito tempo.

CULTURA E MORAL Por que dependentes de álcool vão para o sistema de saúde enquanto dependentes de drogas vão para a cadeia? A explicação possível é de natureza cultural e moral.
As primeiras conferências internacionais para banir o comércio de drogas, ocorridas há cem anos e lideradas por um bispo norte-americano, passaram ao largo de evidências científicas e de saúde.
Numa época em que a cocaína era produzida pela Bayer e destacada nas drogarias, a estratégia de banir substâncias psicotrópicas do comércio global foi antes motivada por interesses religiosos, políticos e econômicos (leia mais em folha.com/ilustrissima).
“O álcool é parte da tradição religiosa ocidental, enquanto as demais drogas têm origem em países periféricos e foram demonizadas”, explica Henrique Carneiro, professor de história moderna na USP e autor de livros sobre drogas.
Reiterada ao longo de décadas, a mensagem de que usar maconha é errado, mas beber álcool não, estigmatizou uma como a “erva do diabo”, outro como o “néctar dos deuses”, enaltecido em anúncios que relacionam seu uso a festas e gostosas de biquíni.

MACONHABRAS Outra confusão escondida sob o fumacê é a diferença entre uso recreativo e uso medicinal. A proposta de criação de uma agência nacional para pesquisar o uso terapêutico ganhou de Ronaldo Laranjeira o apelido de “Maconhabras”.
Entre as possíveis aplicações terapêuticas estão as propostas pelos psiquiatras paulistas Eliseu Labigalini Júnior e Dartiu Xavier, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
No final dos anos 1990, eles acompanharam um grupo de 50 viciados e notaram que alguns usavam maconha para baixar a ansiedade e conter a “fissura” causada pela pedra de cocaína fumada. Por estimular o apetite, a erva impediria, em tese, que o crackômano definhasse até a morte.
A substituição de drogas pesadas por outras, menos danosas e administradas sob controle, é uma tendência no tratamento de viciados em heroína, por exemplo, que recebem doses de metadona. Internacionalmente reconhecida, a técnica ganhou o nome de redução de danos.
A pesquisa de Labigalini e Xavier, porém, parou no nível de observação daquele pequeno grupo. “Para um estudo grande, teríamos de fazer uma intervenção terapêutica” -ou seja, distribuir a droga aos pacientes. “Mas isso é ilegal no Brasil.”
Cientistas como Elisaldo Carlini, ex-professor de Laranjeira na Unifesp e pioneiro mundial nos estudos farmacológicos da maconha, argumenta que o cultivo poderia ser feito pelo Ministério da Saúde, cuja distribuição seria controlada, para fins médicos e científicos. Mesmo assim, arrisca uma opinião sobre o uso recreativo da erva: “A medicina teria de ser menos autoritária em relação ao uso cultural da maconha”.
Malcher-Lopes defende a administração da planta, vaporizada, ao paciente, ainda que isso signifique deixá-lo “doidão”. “Imagine uma senhora aposentada que faz quimioterapia e tem dores de artrite. Para ela é melhor inalar do que tomar pílulas de THC. O efeito é mais rápido e uma pílula bate no estômago e volta”, afirma.
“Proclamar a aplicação médica da maconha como justificativa para legalizar o uso da cannabis é misturar duas coisas e é fugir ao ponto”, alerta o médico Drauzio Varella, colunista da Folha, e afirma: “A questão é: descriminalizar ou não?”.

LEI DE DROGAS Não é por falta de ousadia na lei que o Brasil ainda não encontrou uma resposta eficaz para o problema. A lei nº 11.343, de 2006, isentou os usuários da pena de privação de liberdade e, ao mesmo tempo, endureceu as condenações pelo crime de tráfico. Mas peca ao não especificar a quantidade de maconha que diferencia usuário e traficante.
“A situação no Brasil é a pior possível”, avalia o cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, coordenador do Núcleo de Estudos da Violência da USP. “A legislação a respeito é imprecisa, as prisões estão cheias e a política repressiva, de custo extraordinário, não prioriza os grandes traficantes, intocados no Brasil.”
Ao tornar mais confuso o que já era nebuloso, a Lei de Drogas abriu as portas para situações como a de Pedro Caetano. Desde a promulgação da lei, o número de presos por tráfico de drogas no país quase dobrou: em 2006, cerca de 45 mil pessoas estavam encarceradas por narcotráfico. No final de 2009, já eram 86 mil.
Um estudo encomendado pelo Ministério da Justiça apontou que 70% deles foram presos em flagrante, desarmados, sem indício de relação com o crime organizado e portando pequenas quantidades -no caso da maconha, 50% com menos de 100 gramas da erva. Há quem tenha sido condenado por tráfico por ter no bolso alguns baseados.
“A aplicação da lei nº 11.343 mostrou que os presos por tráfico são elementos de menor importância, mas condenados a altas penas, que não refletem a gravidade de sua conduta”, conta a autora do estudo, Luciana Boiteaux, professora-adjunta de direito penal na UFRJ. Ela cita um homem que entrevistou na penitenciária de Bangu (RJ), preso com 23 g de maconha e condenado a seis anos de prisão.

DE BANDEJA A pesquisa aponta para a hipótese de que boa parte parte desses presos sejam meros usuários. “Se está na favela, é traficante. Se está nos Jardins, é usuário. E isso não pode ser”, avalia Pedro Abramovay, secretário nacional de Justiça. “Ao colocarmos essas pessoas na prisão, estamos dando elas de bandeja para o crime organizado.”
Para ele, duas medidas urgentes precisam ser tomadas. A primeira é em relação à aplicação de penas alternativas para o tráfico. Em 1º/9, o Superior Tribunal de Justiça declarou inconstitucional justamente a parte da Lei de Drogas que proíbe a aplicação de pena alternativa a presos por tráfico. A segunda mudança é a espera do processo em liberdade, como ocorre em crimes como homicídio. “Atualmente, não existe proporcionalidade”, diz Abramovay.

DECISÃO INÉDITA EM 2008, no Tribunal de Justiça de São Paulo, o juiz José Henrique Rodrigues Torres foi mais longe: considerou inconstitucional a criminalização do porte de entorpecentes. Para ele, desde que para consumo próprio, o porte não oferece perigo à sociedade, logo, não pode ser criminalizado. A decisão era inédita.
“A criminalização de uma conduta não pode gerar mais problemas que o problema que se quer controlar”, explica. “O molho ficou mais caro do que o frango!”.
Para Cristiano Maronna, diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, “só os ingênuos ou os de má-fé não reconhecem a necessidade de mudança na atual política de drogas”.
O jurista Walter Maierovitch, primeiro secretário nacional Antidrogas do Brasil, afirma que a discussão da política de drogas no país é obscurantista.
“Não há dúvidas de que a droga cause malefícios”, diz. “Mas levar um usuário para o campo criminal é punir o indivíduo duas vezes. Trata-se de uma questão de saúde pública.”

REDUÇÃO DE DANOS Se, no Brasil, a discussão ainda está engatinhando, em Portugal, ela foi radical. Há quase dez anos, o uso de todas as drogas deixou de ser crime por lá. O usuário, considerado como alguém com problemas de saúde, e não como criminoso, recebe uma punição administrativa, como uma multa de trânsito.
Ao contrário das previsões tenebrosas dos opositores à medida, Portugal não se tornou um destino de narcoturismo nem viveu uma explosão de “junkies”.
“Houve uma diminuição no uso de qualquer droga no grupo das pessoas mais jovens, diminuição da população prisional e recorde de procura pelos serviços de tratamento”, explica João Goulão, presidente do Instituto da Droga e da Toxicodependência do Ministério da Saúde português.
Ao invés da lei brasileira, os portugueses precisaram a quantidade de drogas que configura o porte como uso e não tráfico: o equivalente a dez doses, seja de maconha, heroína ou anfetamina.
Quem é pego com uma dessas substâncias é encaminhado a uma “comissão de dissuasão”, que classifica se o indivíduo é usuário eventual, dependente ou alguém em vias de tornar-se dependente. A sanção é aplicada de acordo com o caso. Enquanto usuários eventuais podem pagar uma multa, dependentes não recebem este tipo de pena, para evitar que cometam crimes para obter o dinheiro.
Para Goulão, a descriminalização em Portugal é decorrência direta de uma mudança de percepção: a de que o dependente de drogas não é um marginal, mas alguém que precisa de ajuda.
Apesar de ter população de apenas 10 milhões de habitantes, equivalente a pouco menos da população da cidade de São Paulo, o caso português tem sido apontado como merecedor de mais atenção internacional.
“Mas um passo como este não pode ser dado sozinho”, alerta Goulão. “É preciso investimento em tratamento e prevenção, redução de danos e reinserção social. Se não se faz mais nada, a descriminalização do uso de drogas pode ser um perfeito desastre.”
O “Cannabis Policy” cita como exemplo de mudança de paradigma o caso pioneiro da Holanda. A descriminalização, nos anos 1980, fez o consumo entre adolescentes aumentar num primeiro momento, antes de o governo passar a limitar a venda de maconha aos “coffee-shops” -onde, aliás, não se pode consumir álcool.
“A taxa de uso de maconha na Holanda é bastante compatível com as dos outros países europeus. A Holanda não está nem perto de ter a maior taxa de uso de maconha da Europa, entre adultos ou entre adolescentes. O que quer que você pense do sistema, ele não transformou a Holanda num país ‘chapado'”, afirma Peter Reuter.

DE REPENTE, CALIFÓRNIA A legalização do uso medicinal na Califórnia, decidida em plebiscito em 1996, foi o primeiro passo para a Proposição 19, que os cidadãos daquele Estado votarão no dia 2 de novembro. Se for aprovada, poderá legalizar, regulamentar e taxar a maconha para uso recreativo.
Foi a crise financeira de 2008 que garantiu apoio político para o pragmatismo da proposta: a taxação do comércio da erva pode gerar aumento de arrecadação para os cofres públicos da ordem de US$ 1,4 bilhão (R$ 2,36 bilhões). Diante do rombo nas contas do Estado, a legalização deixou de ser amoral. Para muitos, no entanto, ainda soa como disparate.
Não é o caso do ex-presidente do banco Wachovia, Derek Peterson, 36, para quem a proposta soa como música. Desde que o banco onde trabalhava faliu durante a crise de crédito, Peterson abriu outras três empresas.
Quando o telefone toca em uma delas, a EGrow, ouve-se do outro lado da linha a voz de Bob Marley, papa pop do reggae, entoando a canção “Rastaman Vibration”.
A EGrow ocupa um hangar na zona industrial de Oakland, na baía de San Francisco. É uma empresa especializada na venda de equipamentos high-tech para plantadores da erva. Peterson prevê cotá-la na Bolsa e ainda quer abrir uma megafazenda de cannabis em que espera produzir 45 quilos de erva por dia e obter uma cifra de R$ 120 milhões em 2011.
“A maconha medicinal é hoje uma commodity como qualquer outra na Califórnia. E, se for aprovada, a Proposição 19 vai fazer o mesmo com a maconha recreativa”, avalia. “Contrariamente ao mercado financeiro, o mercado de maconha não tem sofrido oscilações: sempre há demanda.”

SCRIPT DE 1968 O debate, que não é apenas científico e jurídico, mas também cultural, ainda está longe de um consenso no país.
“Passei um mês numa clínica para dependentes por conta de problemas com álcool”, diz o escritor Ruy Castro, que abordou a questão da maconha em suas crônicas na Folha. “Vi de perto o que outras drogas fazem”.
Para ele, “a vida não seguiu o script de 1968” quando o assunto é o uso de psicotrópicos. “Uma coisa é intelectual leitor de Aldous Huxley ter direito ao próprio corpo. Quando isso virou criança na rua usando droga, a coisa mudou.”
Castro se irrita com a onipresença do debate da maconha. “É tanta gente a favor da legalização da maconha que dá vontade de fazer dizer: então tá, morre logo todo mundo e dane-se. E aí podemos tratar de outro assunto.”

Qual dos males é o menor: o prejuízo à saúde causado pela fumaça ou os danos decorrentes da proibição? Quando o assunto é maconha, não é fácil separar o trigo científico do joio ideológico

As conclusões não são animadoras para o proibicionismo: mesmo banida no mundo inteiro por uma convenção internacional desde 1961, a maconha foi usada por 4% da população adulta mundial em 2005, ou 160 milhões de pessoas

A guerra contra as drogas, capitaneada pelos EUA, produz “amplas violações de direitos humanos”, especialmente contra jovens e minorias étnicas. Proibidas, as drogas geram um mercado negro que dissemina corrupção e violência

70% dos detentos por tráfico foram presos em flagrante, desarmados, sem indício de relação com o crime organizado e portando pequenas quantidades -no caso da maconha, 50% com menos de 100 gramas

A legalização do uso medicinal na Califórnia, em 1996, foi o primeiro passo para a Proposição 19, que os cidadãos votarão no dia 2 de novembro. Se aprovada, poderá legalizar e taxar a maconha para uso recreativo.

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