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Delegados coagem e deixam mulher nua em busca pessoal

Do Blog do Professor LUIZ FLÁVIO GOMES

“Com um treinamento apropriado e técnica adequada, a não violência pode ser praticada pelas massas humanas” (Gandhi).

Está comprovado: no Brasil nem toda nudez é castigada! O vídeo dos delegados de polícia (cf. o vídeo) que obrigaram uma mulher suspeita (de corrupção ou concussão) a ficar nua na presença deles para o efeito de uma busca pessoal é estarrecedor. Onde chega a arbitrariedade?

O crime de corrupção (ou concussão) é grave e precisa ser devidamente punido. Mas a polícia não pode apurar um crime cometendo outro (ou outros). Muito correta e digna de elogios a cobertura da TV Bandeirantes (cf. o vídeo). Tributo ao jornalista Fábio Pannunzio (que divulgou o vídeo no seu blog). Os delegados foram afastados das suas funções.

A lei processual penal (art. 249 do CPP) é clara: a busca pessoal em uma mulher deve ser feita por outra mulher, salvo em caso de retardamento ou prejuízo para a diligência. Havia mulheres no local (policiais) e mesmo assim os delegados optaram por despir, à força, a mulher. Prova (se é que se pode chamar aquilo de prova) totalmente ilícita, porque obtida de forma ilegal (com violação, desde logo, do art. 249 do CPP). O vídeo constitui um exemplo emblemático de como não se deve colher provas no Brasil.

No princípio o delegado disse que se ela não se despisse haveria desobediência. Nada mais incorreto. Quem desobedece ordem ilegal não comete o crime de desobediência. De outro lado, esse crime não permite prisão em flagrante (porque se trata de infração de menor potencial ofensivo). Tampouco poderiam ser usadas as algemas (no contexto em que tudo aconteceu). Violou-se também a Súmula Vinculante 11 do STF.

Com a mulher (ex-escrivã de polícia) teria sido encontrado dinheiro (R$ 200,00). Mesmo que esse dinheiro fosse fruto de uma corrupção passiva (ou concussão), mesmo assim, crime nenhum estava sendo cometido naquele momento. Não cabia prisão em flagrante, portanto. O abuso de autoridade está mais do que evidenciado. Também a tortura (para a obtenção de prova).

O Juiz, a pedido do Ministério Público, arquivou o caso. Não vislumbraram nenhum delito. Com a devida vênia, se equivocaram redondamente. As Corregedorias respectivas deveriam apurar tudo isso com prudência e equilíbrio. Também deveriam entrar em campo o CNJ e o CNMP, além da OAB.

Todas as vezes que o Estado transforma um criminoso (ou suspeito) em vítima, por meio do abuso e da arbitrariedade, nasce mais uma violação de direitos humanos. Ou seja: mais um ato de violência. Violência que, nesse caso, foi ignorada (arquivada) pela Corregedoria da Polícia Civil, pelo Ministério Público e pelo Juiz. Nem toda nudez é castigada!

A vítima de toda essa violência, ainda que seja um criminoso, tem todo direito de ingressar com ação civil reparatória contra o Estado, sobretudo quando afetada de modo profundo sua dignidade humana. E se não atendida no Brasil, tem portas abertas na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, a mesma que já “condenou” o Brasil várias vezes (Caso Maria da Penha, Caso dos Presídios do Espírito Santo etc.).

O emérito Professor Ferrajoli tem ensinado que “A história das penas é sem dúvida mais horrenda e infame para a humanidade que a própria história dos crimes” (Direito e Razão, São Paulo: RT, 2. ed., 2006). Cabe agregar: a história das penas e dos arbitrários métodos investigativos é (deveras) muito mais infame que a dos crimes.

Mas por que tudo isso ainda acontece no Brasil? Três fatores se destacam:

(a) cultura da violência. O Estado brasileiro já nasceu sob a égide de um genocídio e até hoje ainda não sabe o que é razoabilidade, vida em paz, respeito ao outro etc. Vigora ainda entre nós, especialmente contra os discriminados étnicos, sociais e econômicos, a cultura da violência. Margens de ilegalidade e de arbítrio algumas autoridades se concedem (um pouco ou uma grande quantidade de dor, certa dose de humilhação bem como maus-tratos).

O genocídio e a tortura fazem parte da história do Estado brasileiro. Os governantes fazem discursos dúbios. Preocupa-se mais com o vazamento do vídeo, que com o ato de tortura em si.

A tortura padronizada (contra os discriminados étnicos, sociais e econômicos) nas delegacias e nas prisões faz parte da política estatal ambígua, de guerra civil permanente, de todos contra todos, praticada desde 1500, com a conivência de grandes setores do Ministério Público e da Magistratura, que fecham os olhos para gritantes violações de direitos humanos (das vítimas dos criminosos assim como das vítimas da violência estatal). Vigora no Brasil a cultura da pressão (da opressão, da coação, da violência). Com a garantia da impunidade. Isso não retrocede, ao contrário, só incrementa a guerra civil brasileira de todos contra todos.

(b) ausência das disciplinas Ética e Direitos Humanos: falta, sobretudo para muitos agentes da maquina repressiva (muitos não são todos), estudar Ética e Direitos Humanos, que constituem a base da cultura da não violência.

(c) cultura da impunidade: Mesmo quando vídeos são gravados, ainda assim, sabe-se que tudo será (muito provavelmente) arquivado pelo Poder Jurídico. O inquérito que apurou a violência aqui narrada foi arquivado. Os delegados foram afastados “porque o caso ganhou repercussão nacional”.

O sistema investigativo no Brasil está falido. Oitenta e seis mil inquéritos policiais, sobre homicídio, instaurados até 2007, acham-se praticamente parados. A máquina repressiva do Estado funciona mal. Tortura, abusos físicos, maus-tratos, humilhação sexual, crueldade gratuita e indignidade: tudo isso comprova que essa máquina está falida, há séculos (cf. Luís Mir, Guerra civil).

É preciso apurar com precisão tudo que ocorreu, porque alguma hierarquia pode estar por detrás do fato. Normalmente o superior acaba delegando para os subordinados a triste função da tortura (cf. Luís Mir, Guerra civil). Mas quando a ordem é manifestamente ilegal todos respondem: quem deu a ordem e quem a cumpriu.

*LFG – Jurista e cientista criminal. Doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e Mestre em Direito penal pela USP. Presidente da Rede LFG. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). Acompanhe meu Blog. Siga-me no Twitter. Encontre-me no Facebook.

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