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Cachorros-loucos, motociclistas e a morte no trânsito: culpa de quem ?

Sou motociclista — motoqueiro para alguns. Não sou um “cachorro-louco”, alcunha que descreve o comportamento antissocial adotado por visigodos que desconhecem o conjunto de regras disciplinadoras do trânsito. Respeito as regras porque não sou burro a ponto de botar a perder minha vida e o sustento dos meus cinco filhos.

De cima de uma moto, o mundo é sempre uma ameaça. Os “cachorros-loucos” reagem de maneira violenta a essa ameaça. Afrontam motoristas, quebram retrovisores, reúnem-se em turbas quando algo dá errado e um carro colide com uma motocicleta (ou vice-versa). Na selva em que se transformaram as ruas de São Paulo, um autêntico circo romano, o aumento quase dramático do número de veículos de duas rodas é que determina o recrudescimento da violência e a vulnerabilidade dos condutores. O problema é que o trânsito não é um palco político, embora muito do que acontece possa — deva — ser debitado da conta de quem administra as cidades. E é justamente aí que se situa o problema.

No ano passado, quase dois milhões de motocicletas foram emplacas no Brasil — a despeito das dificuldades de financiamento enfrentadas pelos consumidores. A moto se consolida como alternativa ao caos generalizado nos transportes públicos, que impõe um castigo diário aos milhões que são obrigados a utilizá-lo.

O ônibus é lento, a moto é rápida. O ônibus é caro, a moto é barata. Em termos absolutos, a compra de uma motocicleta pode ser integralmente financiada pela renúncia ao transporte coletivo. O usuário do sistema paga a prestação com o dinheiro do bilhete e ainda sobra algum para a gasolina. De quebra, as motos ampliam a possibilidade de locomoção, dão materialidade do direito de ir-e-vir.

De moto, alcança-se a praia no fim-de-semana, a casa da sogra, o churrasco na laje. O toque de recolher determinado pela indisponibilidade de  coletivos durante a noite, por exemplo, não existe para quem anda numa moto, barata ou cara. Você nem imagina a sensação de liberdade experimentada  por quem fica livre do jugo dos transportes públicos. Nesse sentido, é inquestionável que a aquisição de um veículo funciona como um agregador de cidadania. A moto é uma espécie de redentor da nova classe média.

De acordo com o DENATRAN, há hoje 18,57 milhões de motocicletas, ciclomotores e motonetas em circulação no Brasil. Elas correspondem a um quarto da frota nacional. Chama a atenção, no entanto, que em 2.637 localidades brasileiras — metade do universo — já haja mais motos do que carros nas ruas. Quanto mais pobres e isoladas as comunidades, maior o índice de veículos sobre duas rodas. Não por acaso, o Norte e nordeste do Brasil lideram o índice que confronta motos e carros.

Tonantins, no Amazonas, é o município com maior proporção de motocicletas em relação ao total da frota. Dos 315 veículos ali registrados, 306 são motos. Lá existe apenas um automóvel. A pequena cidade, no entanto, goza de um privilégio: um ônibus, veículo inexistente em 49 município onde as motos predominam sobre os todos os demais.

A epidemia de motos já contamina duas capitais e alguns municípios com população na casa de centenas de milhares de habitantes. Montes Claros, no Norte de Minas Gerais, lidera o ranking das grandes cidades com prevalência de veículos de duas rodas (66.127) em face dos carros (64.173). Em seguida, no segundo e terceiro lugares do ranking, aparecem Boa Vista (RR) e Rio Branco (AC).

Em estados como Pernambuco, a deficiência na formação dos condutores, a popularização das motocicletas e o desrespeito às leis de trânsito criaram uma outra epidemia — a de mortes e mutilação em acidentes de trânsito. De acordo com o governador Eduardo Campos, o atendimento a motociclistas acidentados está criando um exército de sequelados. O sistema público de saúde não consegue atender à demanda por leitos na emergência dos hospitais.

O mesmo se verifica em São Paulo, onde quase 8,6 milhões de motos disputam espaço nas ruas apertadas com 6,63 milhões de automóveis. Uma em cada três vagas nas UTIs dos grandes hospitais é permanentemente destinada a motociclistas acidentados. Com ferimentos invariavelmente graves, os motociclistas, como regra, chegam à emergência com terríveis comprometimentos ortopédicos e neurológicos.

Diante de um quadro dessa gravidade, é inexplicável a falta de atenção dos governantes para o problema. A Prefeitura de São Paulo chegou a esboçar uma reação e criou motofaixas em duas avenidas para separar os veículos de quatro rodas dos de duas. A iniciativa foi bem aceita pela população, mas ficou na etapa piloto.

Para justificar a inação, evoca-se uma discussão cheia de falácias e sofismas, segundo a qual os motoristas não estariam dispostos a ceder espaço nas vias congestionadas para os motociclistas. Não é difícil constatar a fragilidade desse argumento. Em julho passado, entrevistei 52 motoristas aleatoriamente em vias da cidade. Apesar de a enquete não ter nenhum rigor científico, nenhum dos motoristas reprovou as motofaixas — o que é notável no cenário de guerra que conforma o trânsito paulistano.

O prefeito Gilberto Kassab também tem negligenciado a recuperação de vias em péssimas condições — ruas e avenidas que dão à cidade de São Paulo o vergonhoso primeiro lugar no ranking das metrópoles com pior pavimento asfáltico do planeta. Não por acaso, é praticamente impossível encontrar estatísticas confiáveis sobre a extensão da malha viária urbana comprometida por buracos.

É notória a falta de transparência da Prefeitura. Ressalte-se que no ano passado o prefeito Kassab contingenciou R$ 120 milhões que o orçamento destinava às operações tapa-buraco. Números coletados na internet dão conta da existência de um buraco a cada 400 metros. Além da falta de confiabilidade das fontes, não é difícil constatar que a buraqueira é bem maior e mais prolífica do que as autoridades admitem.

Em matéria de negligência, o governo do estado não fica atrás. Estima-se que as rodovias estaduais paulistas não pedagiadas têm cerca de dez mil quilômetros de buracos, extensão que representa dois terços da malha. O estado de gaba de ter as melhores rodovias do País. Mas entre as que foram privatizadas também há problemas de manutenção. Para os motociclistas, a negligência dos governantes  se traduz como uma das principais causas do aumento exponencial do número de mortos e feridos no trânsito.

Bicicletas assassinas

Na noite desta sexta-feira, um protesto de ciclistas na Avenida Paulista paralisou o trânsito no coração de São Paulo. O protesto ocorreu depois que mais uma ciclista perdeu a vida em um acidente evitável.

Enquanto cidades da Europa adotam bicicletários públicos como alternativa ao transporte individual motorizado, aqui os ciclistas são lançados à própria sorte no trânsito caótico e ameaçador. A Prefeitura criou ciclovias que só funcionam no fim-de-semana. A população aderiu a elas de maneira imediata. Apesar dos protestos dos motoristas, que reclamam dos congestionamentos consequentes do fechamento parcial das avenidas para que as bicicletas possam circular com segurança, é inegável que os paulistanos que desejam usar suas ‘bikes’ para atividades de lazer ganharam com isso — uma importante conquista de mais um naco de cidadania.

Mas há projetos mal dimensionados, como a ciclovia da Avenida Ibirapuera, que criaram mais problemas do que soluções. E há um equívoco estrutural no genótipo desse projeto. A bicicleta constitui, sim, um meio de transporte importante. Pode ser usada para ir ao trabalho. Menos em São Paulo, onde a Prefeitura parece considerá-las meros brinquedos.

Enquanto as autoridades fazem de conta que o problema não existe, o aumento vertiginoso do número de motociclistas e ciclistas só faz alimentar a guerra por espaço no trânsito. O clima de confrontação entre estes e os condutores de automóveis deve recrudescer. Nesse ambiente, a confrontação afirmativa parece ser a única solução. E como o que está em jogo é a vida, espera-se um incremento da hostilidade entre motociclistas, motoqueiros e motoristas.

Quem sobrevier, verá.

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