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Uma história dos Anos de Chumbo

Vou contar o que fui fazer neste fim-de-semana — e uso a oportunidade como pretexto para contar um pouco da minha história. Há alguns leitores que pedem isso há muito tempo — uns por curiosidade sobre a minha biografia, outros buscando elementos para atacá-la. Vou saciar as duas partes.

Fui visitar minha família em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. Meu irmão mais novo, Eduardo, comemorou um feito incrível: bodas de prata, 25 anos de casamento feliz com sua grande companheira Patrícia. Fizeram uma festa singela no meio de um campo de girassóis. Linda mesmo.

O lugar onde houve a festa é uma fazenda que está em com minha família desde 1902, 110 anos atrás. É uma propriedade  pequena onde Eduardo e a minha mãe  ganham a vida plantando todo tipo de coisa: soja, milho, ervilha, feijão… e girassóis, a lavoura mais linda que eu já vi. O  relevo é muito plano. Fica a mais de 800 metros de altitude. No outono o por-do-sol é espetacular.

A vegetação nativa é baixa e retorcida. Um cerrado ralo que, num primeiro momento, assusta quem está acostumado com a exuberância da Mata Atlântica. A beleza do cerrado só se descobre observado os detalhes. As flores, por exemplo, são minúsculas, mas são espetacularmente bonitas.

Foi observando detalhes assim que minha mãe, que se chama Martha Pannunzio, colheu material para compor uma linda e premiada obra literária infanto-juvenil. São dela ‘Veludinho’, ‘Os Três Capetinhas’, ‘Bicho do Mato’, ‘Era Uma Vez Um Rio’, ‘Bruxa de Pano e ‘Você Já Viu Gata Parir’. Esses livros lhe valeram os prêmios mais prestigados do País: INL, APCA, Jabuti.

Ela e minha irmã caçula, Lavínia, tocam também um projeto teatral muito bacana. Fazem montagens adaptadas dos livros da Dona Martha. Concebem os espetáculos, conseguem patrocínio privado e fazem encenações profissionalíssimas. O público são os alunos de escolas públicas, que não pagam ingresso e têm o transporte garantido pelo projeto. Mais de 80 mil crianças tiveram assim seu primeiro contato com o teatro.

Hoje as coisas parecem ordeiras e harmônicas em Uberlândia. A vida é simples, alegre e produtiva. Mas houve uma data, 1º de abril de 1964, em que elas começaram a ficar bem difíceis.

Meu avô se chamava Afrânio Francisco Azevedo. Era comunista e espírita kardecista, uma coisa que muita gente não entende até hoje.  Mas nos anos 40 a 60 era perfeitamente possível. Tanto que ele era  amicíssimo de Chico Xavier e Luis Carlos Prestes — que foi padrinho de casamento da minha mãe.

O velho Afrânio era um sujeito notável. Dessa mescla de espiritismo e comunismo nasceu um grande filantropo. Teve uma passagem efêmera pela política — elegeu-se deputado estadual em Goiás pelo Partidão em 1946 e foi cassado em 1948. Nunca mais se candidatou a nada.

Em 1958, mandou os quatro filhos mais velhos (o caçula, Chico Humberto, era recém-nascido) à União Soviética para o Festival da Juventude daquele ano. Ficaram lá seis meses e se encantaram com a Revolução. A correspondência entre eles e meu avô foi compilada em um livro chamado “Cartas de Dois Mundos”, assinado em coautoria pelos quatro irmãos.

Bem, chega o dia 1º de abril de 1964. Todo mundo sabe o que aconteceu.

Quando o Banco do Brasil reabriu, meu avô correu até a agência para fazer um saque. Por precaução, era melhor ter algum dinheiro ao alcance da mão para enfrentar alguma eventualidade política.

A eventualidade surgiu ali mesmo. Apresentou-se como tenente do Exército e entregou uma lista de nomes ao gerente. Queria as fichas cadastrais de todos aqueles clientes. O nome do meu avô, Afrânio, era o primeiro da lista, organizada em ordem alfabética. Teve a sorte de estar entre amigos: foi um dos fundadores da agência de Uberlândia. Funcionário de carreira, trabalhou anos ali e deixou bons amigos.

Esse gerente era um deles. Ao ver seu nome na relação, chamou meu avô de lado e entregou-lhe todo o  saldo da conta. Dali, meu avô saiu direto para o exílio no Peru.

A notícia pulverizou a família. Meu pai, Gilberto, que a rigor não tinha nada a ver com aquilo, botou umas provisões num caminhão e ajeitou a família na boléia. Fomos viver na sede da fazenda onde agora meu irmão mais novo celebrou as bodas de prata. A casa devia ter dois séculos de idade. Um casarão colonial construído com adobe e umbrais de aroeira que desafiavam o tempo. Eu tinha três anos de idade. Adriana, minha outra irmã, ia fazer dois. Pedro Paulo, o terceiro da turma, nascera dois meses antes.

Um dia apareceu por lá meu tio Célio Borges. Tio-avô. Sabe essas pessoas de quem todo mundo gosta ? Pois esse era o Tio Célio. Sempre disponível, solidário, pronto para ajudar.

Chegou no meio da tarde e mandou chamar minha mãe. Tinha uma caixa cheia de latas de Leite Ninho. Disse:” Martha, pegue essa caixa, mande o Gilberto por na camionete, pegue os meninos e sumam daqui já. 

Como os milicos não encontraram ninguém — mas viram a comida no fogão, as roupas no varal, brinquedos no meio da sala — ficaram com muita raiva. Queimaram tudo o que havia ali. Documentos, roupas, camas… tudo! O casarão de dois séculos ardeu.

O leite do peito da minha mãe secou antes que as brasas do casarão virassem cinza. Bendito Tio Célio: salvou Pedro Paulo, o recém-nascido, da inanição.

Tenho algumas lembranças dessa época, mas elas não são confiáveis. Lembro-me com clareza que vivíamos de fazenda em fazenda de amigos e parentes que se dispunham a nos receber.

As coisas se acalmaram e a família voltou à cidade porque era preciso dar andamento à educação formal dos filhos. Meus pais decidiram correr o risco.

Tudo ia mais ou menos tranquilo até o começo de 1970. Foi quando a foto do meu tio Afrânio Marciliano começou a aparecer em cartazes ao lado das palavras “terrorista” e “procurado”. Vi aquilo uma única vez num show da Esquadrilha da fumaça.  O cartaz estava estampado no saguão do aeroporto. Havia outros na rodoviária e nas praças da cidade.Os pais dos colegas comentavam.

É estranho para uma criança de sete anos ver um tio querido rotulado como terrorista. Os adultos diziam apenas que aquilo era mentira, não revelavam o motivo. Por isso,  só vim a entender o problema muito mais tarde, quando fiquei sabendo que o tio Afrânio Marciliano foi o cirurgião-plástico que mudou o rosto de Carlos Lamarca. Ele amargou uma cadeia brava.

A vida, depois disso, virou um inferno para todo mundo. Negaram à minha mãe uma cópia do diploma que queimou no incêndio da fazenda. Por isso ela nunca pode lecionar em uma universidade. Virou professora de francês do que era o equivalente ao ciclo básico dos nossos dias. Formou uma legião de alunos.

Meu pai foi trabalhar como representante comercial de uma empresa que vendia peças de tratores. Ele viajava toda semana, entre terça e quinta-feira, percorrendo as barragens que estavam sendo construídas nos rios Paranaíba e Grande. Sempre trazia uns doces glassados na volta. Eu só conseguia dormir quando ele chegava em casa, o que acontecia sempre de madrugada, entre quinta e sexta-feira.

A atividade na fazenda — essa mesma dos girassóis do Edu e Patrícia — ficou paralisada. Não havia crédito. O cerrado era chamado de “deserto”. Servia apenas para a pecuária extensiva. A massa verde ficava calcinada na seca. Dava para criar um boi por alqueire mineiro, ou um boi para cada cinco hectares. Não havia tantos alqueires assim, consequentemente não havia bois suficientes para dar conta do sustento da família.

Meu avô mandou oferecer a terra ao governo para o programa de reforma agrária do general Castelo Branco. O governo mandou devolver, pois não aceitava terra de comunista.

Ainda bem!

Não fosse a recusa malcriada, não haveria um campo de girassóis para as bodas de prata do meu irmão.

 

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