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A falha humana no voo da Air France

O laudo final do acidente que vitimou os passageiros e a tripulação do voo 447 choca por uma constatação: os pilotos que comandavam o Airbus não tinham a menor noção do que se passava com o equipamento a partir da perda dos tubos de Pitot, que estabelecem a velocidade e altitude de um avião a partir da medida das pressões dinâmica e estática do ar.

Na transcrição, pode-se ver que três tripulantes dialogam o tempo todo, divergindo sobre a atitude do aparelho ao longo de um intervalo de tempo enorme. Enquanto isso, não conseguiram tirar o avião da condição de STALL (Stop All Lift) em que ele se encontrava — sequer perceberam a falta de sustentação da aeronave até que ela se chocasse com superfície do mar.

O perda de sustentação e o STALL talvez sejam as condicões mais estudadas no curso básico de formação de pilotos. Logo nas primeiras lições práticas, treina-se exaustivamente o voo no limite mínimo de velocidade. O piloto deve saber controlar o aparelho porque é nessa condição que se dá o pouso, que nada mais é do que um estol controlado.

A velocidade de estol é aquela a partir da qual a força de arrasto se equipar a força de tração (que “empurra”o avião para a frente) e o peso se torna superior à sustentação, fazendo com que a aeronave perca altura rapidamente. O avião atinge essa condição quando tem seu nariz “empinado”até um ângulo de inclinação em que a potência dos motores e a dinâmica do voo impossilitam o ganho de velocidade necessário para solucionar o problema.

Também está nas cartilhas dos pilotos em treinamento a solução para esse tipo de condição: empurrar o nariz do avião para baixo, fazendo com que ele perca altura  até recuperar a velocidade de sustentação. Mas em momento nenhum os pilotos do 447 tentaram — sequer cogitaram — fazer o que ensinam os manuais mais elementares da aviação.

Tome-se a favor dos tripulantes o fato inquestionável de que a informação essencial havia sido suprimida pela falência dos sensores externos. Com os tubos de Pitot entupidos por gelo, eles não tinham a velocidade, o parâmetro mais importante para a manutenção do voo.

Ocorre que voar estolado, que foi o que aconteceu ao longo da lenta queda do 447, produz “sintomas” que podem ser percebidos por outros meios. O voo se torna instável. A aeronave fica “bamba”no ar. A resposta aos comandos  fica lenta e exige movimentos maiores e mais bruscos para corrigir a atitude do avião.  Tudo isso aconteceu enquanto o Aribus traçava a trajetória de sua lenta e suave queda fatal. E não foi percebido.

Além disso, havia outros meios de obter a informação precisa da velocidade. Desde a década de 40 a aviação vem sendo amparada pela eletrônica. Um equipamento GPS desses que custam 150 reais nas bancas de camelôs poderia ter fornecido o parâmetro correto aos pilotos. A informação tinha que estar disponível no painel de comando da aeronave, já que a orientação por satélite hoje é onipresente.

O relatório da autoridade francesa que periciou o acidente afirma, de maneira cabal, que foram os erros dos tripupantes os principais responsáveis pela tragédia que se seguiu, com a perda de quase 300 vidas. Mas deixa uma questão intrigante em aberto: por que três pilotos experientes erram ao mesmo tempo, e de forma tão elementar ?

Ainda que se considerem todas as dificuldades técnicas, fica evidente que há algo mal resolvido na formação dos pilotos.

Com o avanço da eletrônica embarcada, a autonomia dos comandantes ficou reduzida a uma fração do que era anos atrás. Hoje, pilotos são, na maior parte do tempo, meros supervisores dos equipamentos que monitoram o voo. Tudo é feito automaticamente — o controle da velocidade, da potência, da rota, da atitude, da altitude. A sofisticação e as redundâncias eletrônicas, a rigor, tornam o piloto quase desnecessário.

Um avião como o Airbus é capaz de decolar e aterrissar sozinho — desde que os parâmetros sejam estabelecidos crretamente. Se ainda há pilotos nas cabines de comando, é porque eles têm que atuar justamente onde a eletrônica e a automatização dos procedimentos ainda não conseguiram aposentar o cérebro humano. Em tese, eles estão ali justamente para enfrentar situações como a que abateu o Airbus da Air France.

E quando todos falham, quando nem a redundância e a capacidade de processamento do cérebro humano são capazes de corrigir uma situação elementar como a falta de velocidade, há algo muito mais grave do que a simples competência individual de cada um dos tripulantes.

Culpá-los pela tragédia equivale a desprezar uma oportunidade rara — e muito custosa, já que centenas de vidas se perderam — de questionar o que está acontecendo na formação e seleção de pilotos pelas companhias aéreas.

Ainda que se atribua o acidente à falta de acuidade individual para perceber o que se passava nos minutos em que o 447 da Air France cumpria sua trajetória fatal, não se pode atribuir apenas aos comandantes a incapacidade de sair da situação que o levou a mergulhar no Atlântico.

Por mais que tenham errado individualmente, induzidos que foram pela falha dos sistemas de orientação do voo, o erro coletivo coloca necessariamente algumas indagações: até que ponto a automatização do voo pode melhorar a segurança dos tripulantes e passageiros ? Até que ponto a segurança proporcionada pela eletrônica embarcada, e a consequente supressão da autonomia do homem sobre a máquina, pode tornar a viagem segura ?

Há pelo menos duas boas justificativas para uma reflexão profunda sobre esses temas. Infelizmente, ambas tiveram um alto custo para os brasileiros. A primeira foi o acidente com o avião da TAM no Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. Tal como no vôo 447, os pilotos não conseguiram resolver uma divergência entre o que era necessário fazer e o que os sistemas de bordo permitiram que eles fizessem.

Evidências de que, quando todos falham, quem falhou não foi o homem — foi o sistema do qual o ser humano é apenas uma das engrenagens.

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