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Teles privadas vendem imóveis que podem ser da União com o beneplácito da ANATEL

A incúria de funcionários do escalão superior da Agência Nacional de Telecomunicações pode estar colocando a perder um patrimônio público de valor inestimável. Milhares de imóveis que incorporados das subsidiárias do antigo Sistema Telebrás,  que até 1998 detinha o monopólio das telecomunicações no País, estão sendo vendidos pelas telefônicas privadas sem que a ANATEL imponha qualquer tipo de óbice, o que é proibido pela legislação.

Não se sabe a quantidade de bens alienados nem o valor desse patrimônio. As informações são mantidas em sigilo por órgãos oficiais como o BNDES, a ANATEL e o Ministério das Comunicações. Só é possível rastrear a origem dos bens a partir das matrículas de alguns imóveis que vêm sendo vendidos em hasta pública ou da consulta a processos judiciais que não correm em segredo de justiça.

Uma reportagem exibida pelo Jornal da Band desta segunda-feira revelou o primeiro caso concreto conhecido sobre o assunto. Cinco anos após a privatização, a companhia Brasil Telecom ofereceu um bem reversível à penhora para contestar judicialmente um processo de execução fiscal.

O Centro Administrativo aferecido à penhora: bom dia com o chapéu alheio

A operadora foi processada porque deixou de recolher R$ 15,79 milhões de ICMS ao Estado de Goiás. Para se defender em juízo, a concessionária ofereceu como garantia o terreno e os 20 prédios que compõem o Centro Adminstrativo Eudoro Lemos, onde estão concentradas a administração e algumas operações da Oi/Telemar em Goiânia, GO. Os imóveis pertenciam à Telegoiás. Foram incorporados pela Brasil Telecom e posteriormente pela operadora Oi.

O terreno tem 20 mil metros quadrados. Situa-se à margem da BR-153, em uma área da capital de Goiás que vive um boom de valorização imbiliária provocado pelo adensamento da área. Pelo menos seis prédios de apartamentos luxuosos foram construídos em suas cercanias nos últimos quatro anos.

A despeito das alegações da operadora de que não havia nenhum bem reversível no local, uma vistoria realizada no dia 29 de janeiro de 2004 constatou a existência de diversos equipamento que têm vinculação direta com o serviço de telefonia fixo comutado prestado então pela Brasil Telecom, o que torna o imóvel necessariamente reversível.

O relatório apontou a existência de sistemas informatizados de controle dos alarmes de todas as centrais telefônicas da telefônica; servidores que comandam as rotas de interconexão entre as centrais telefônicas; um sistema utilizado na coleta de informações que  utilizadas na tarifação e na consolidação dos indicadores de qualidade; o “principal equipamento” da rede corportiva da operadora, por onde trafegava toda a comunicação da prestadora; o call-center e o Serviço de Atendimento ao Consumidor; um sistema considerado “elemento fundamental” para o funcionamento do SAC; uma central telefônica prefixo (62)-244 à qual estavam conectados todos os orelhões instalados dentro e nas imediações do Centro Administrativo; grupos geradores e equipamentos de ar-condicionado.

Ao final da vistoria, Welson Macêdo e Silva, Gerente do Escritório Regional da ANATEL em Goiás, concluiu que “no imóvel (…) existem infra-estruturas e/ou equipamentos que são indispensáveis à prestação do STFC (Serviço de Telefonia Fixo Comutado)”. O documento serviu como base para que a ANATEL negasse anuência pretendida pela empresa.

A Brasil Telecom recorreu várias vezes da decisão, mas não conseguiu reformá-la. Os advogados da companhia utilizaram no recurso a opinião do Procurador-Geral da ANATEL Antônio Domingos Bedran de que “inexiste central telefônica ou qualquer outro equipamento [nas instalações do Centro Administrativo] que possa ser caracterizado como bem reversível” .

Diante da constatação, a concessionária mudou o argumento.”A rigor, a Brasil Telecom poderia transferir todos os equipamentos e aplicativos para outro imóvel e  e transferir a instalação de sua sede administrativa, proceder a venda do imóvel, prescindo, para tanto de qualquer manifestação da agência”, alegou a operadora.

O recurso foi rejeitado em todas as instâncias de deliberação. Mas revela a maneira como as empresas de telefonia enxergam o patrimônio que deverá regressar do Estado depois do fim dos contratos de concessão — como se ele fosse propriedade sua, livre de qualquer tipo de óbice, a despeito da legislação que visa proteger a hegidez do sistema em caso de interrupção da relação contratual com o Poder Concedente.

A oferta do bem à penhora ocorreu em 2003. Terminou sendo barrada pela sagacidade de uma advogada que iniciava a carreira. Janaína Heringer, que atuou como procuradora do Estado de Goiás, desconfiou que o imóvel poderia ser um dos bens reversíveis à União e exigiu a anuência expressa da ANATEL, como impõe a legislação. “Para resguardar o interesse do credor (o Estado de Goiás), nós precisávamos de uma manifestação clara da agência”, explicou a advogada, que hoje atua na Procuradoria do Distrito Federal em Brasília. “Mas essa manifestação nunca veio”.

Instados pelo juiz responsável pela ação, representantes da ANATEL se manifestaram de maneira dúbia e errática no corpo do processo. Chama a atenção a atuação do então Procurador-Geral da autarquia, Antônio Domingos Teixeira Bedran. Em 8 de janeiro de 2004, aparentemente sem nenhuma base jurídica, ele afirmou, em ofício endereçado aos advogados da telefônica, que “ao meu aviso, tratando-se de imóvel desvinculado da preestação do serviço em si mesmo e, portanto, não reversível, inexiste óbice à finalidade declarada [a oferta do imóvel como garantia da dívida]”.

Bedran, no entanto, esquivou-se de avalizar a operação sob o argumento de que “falece competência a este Procurador para expedir autorização expressa para penhora do bem”. Antes, o chefe da advocacia da ANATEL já havia comparecido ao processo  com outra opinião pouco ortodoxa.

“Informo a Vossa Senhoria que, à exceção dos dos bens arrolados como reversíveis e, portanto, indispensáveis à prestação de serviços de telecomunicações sob o regime de concessão, não se encontram bens imóveis utilizados para finalidade exclusivamente administrativa”, oficiou ele ao Gerente Jurídico Ary Barbosa Garcia Jr., da Brasil Telecom de Goiás (veja fac-símile ao lado). O ofício foi anexado à execução fiscal. A manifestação, circular o obscura, poderia ter induzido a erro o juiz e os procuradores goianos, não fosse a assertividade da jovem Procuradora que representou o Estado de Goiás.

“A ANATEL não poderia ter agido dessa forma. Ela tem a obrigação de zelar pela integridade do patrimônio da União. Se há dúvidas sobre a quem pertence um bem e a origem desse bem é pública, o imóvel é da União até que o assunto tenha uma solução definitiva”. A opinião é do representante do Ministério Público junto ao Tribunal de Contas da União, Marinus Marsico.

Entenda o caso

De acordo com o Artigo 93 da Lei Geral das Telecomunicações, que normatizou o processo de privatização das estatais, uma parte dos ativos das teles — bens relacionados diretamente com a prestação dos serviços de telefonia — deveria ser incorporada à União após o fim dos contratos de concessão.

A Resolução 477/2006  da própria agência qualifica os bens reversíveis como “equipamentos, infra-estrutura, logiciários ou qualquer outro bem, móvel ou imóvel indispensáveis à continuidade da prestação do serviço no regime público”. E determina que  “a Desvinculação, Alienação, Oneração ou Substituição de Bens Reversíveis deve, obrigatoriamente, ser objeto de anuência prévia da Anatel”.

Frise-se que a ANATEL só editou e aprovou a Resolução 477 no final de 2006, oito anos após a privatização. E passados cinco anos, algumas operadoras não concluíram o levantamento do patrimônio que deverá retornar à União. Apesar disso, a agência pos em andamento a Consulta Pública nº 52, que tem por objetivo dar mais flexibilidade às normas de controle sobre esses bens.

Janaína Heringer: sagacidade da Procuradora barrou a penhora

“A reversibilidade foi prevista em lei porque o Estado não pode permitir a descontinuidade dos serviços ao término dos contratos de concessão ou nas hipóteses de falência ou encampação”, diz o professor de Direito Administrativo da PUC-SP Márcio Cammarosano. Ele foi um dos coordenadores do anteprojeto da LGT.

A legislação, no entanto, foi transformada em letra morta. As companhias privadas de telefonia que sucederam as subsidiárias do Sistema Telebrás estão liquidando o estoque de imóveis herdado das estatais e a agência reguladora faz vistas grossas à alienação desse patrimônio.

O problema teve origem em vícios que remontam à própria criação da ANATEL. A agência reguladora deveria ter feito um inventário de todos os bens que tinham vinculação direta com o serviço de telefonia antes da privatização. Mas isso, segundo a advogada Flávia Lefévre, jamais foi feito. Lefévre, que integrou o integrou o Conselho Consultivo na ANATEL por três anos, hoje advoga para a Associação de Consumidores Proteste.

A associação tenta há anos, sem sucesso, acessar os relatórios de bens reversíveis. A ANATEL alega que os dados são sigilosos por imposição do Artigo 39 da LGT. A norma estabelece que “a Agência deverá garantir o tratamento confidencial das informações técnicas, operacionais, econômico-financeiras e contábeis que solicitar às empresas prestadoras dos serviços de telecomunicações”. Cammarosano discorda: “Essas são informações de caráter essencialmente público, não podem ser objeto de sigilo porque dizem respeito ao patrimônio da União”, assegura o especialista.

A norma é tão genérica e abrangente que poderia criar situações hipotéticas absurdas. Imagine o que aconteceria a um consumidor que protocolasse uma reclamação contra uma determinada operadora. Caso a agência solicitasse qualquer informação de natureza técnico-operacional ou econômico-financeira para resolver o problema — uma conta errada, por exemplo — esse consumidor jamais poderia ser informado do resultado de sua própria demanda.

Chapéu alheio

“Isso é como dar bom dia com o chapéu alheio”, diz uma fonte consultada pelo Blog que pediu para não ser identificada. “O que as operadoras estão fazendo sob as barbas da ANATEL é liquidar esses bens para fazer caixa”, assegura o especialista. O Blog do Pannunzio e a Rede Bandeirantes confirmaram que pelo menos oito imóveis em várias cidades do Estado de São Paulo foram vendidos nos últimos dois anos sem que a agência reguladora fosse sequer consultada. O assunto será tema da próxima reportagem.

“Isso pode criar problemas para quem adquiriu esses imóveis”, alerta Cammarosano, antevendo a possibilidade teórica de que as transações feitas sem anuência da ANATEL podem ser anuladas no futuro por decisão judicial.

Dentro da agência, a irritação das operadoras com a impossibilidade de dispor libremente dos bens reversíveis encontra eco em ações concretas como a Consulta Pública nº 52, que está em andamento. O objetivo do procedimento é alterar oRegulamento de Controle dos Bens reversíveis.

O projeto que está em discussão isenta da necessidade de obtenção de anuência prévia transações de até R$ 600 mil, valor que pode chegar a R$ 1,5 milhão dependendo dos índices de desempenho das companhias. E cria a figura do “bem em desuso”, qualificado na proposta como “bem ou direito integrante do patrimônio da concessionária que perdeu a condição de indispensável à prestação e atualidade do STFC no regime público”.O Artigo 9º da proposta prevê que “está previamente aprovada pela ANATEL a alienação ou substituição” desses bens.

Outro lado

A ANATEL foi consultada várias vezes por e-mail ao longo das últimas quatro semanas, mas não esclareceu o assunto. Até a notie desta segunda-feira a assessoria de imprensa da autarquia não havia conseguido localizar o processo objeto desta reportagem. A agência assegura que existe uma relatório de bens reversíveis anterior a 2007, mas não explicita em que data ele foi produzido nem que tipos de dados o documento contém. A agência também não atendeu a solitição de nominar uma fonte para conceder entrevista sobre o assunto.

A Oi/Telemar, que sucedeu as operações da Brasil Telecom, disse que não vai se manifestar em função do sigilo imposto pela ANATEL sobre o processo.

ou direito integrante do patrimônio da concessionária que perdeu a condição de indispensável à prestação e atualidade do STFC no regime públicobem ou direito integrante do patrimônio da concessionária que perdeu a condição de indispensável à prestação e atualidade do STFC no regime público
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