No último dia 14, um domingo de tempo espetacular, tive uma parada de motor com meu Aerobravo 700 quando iniciava aproximação do aeroporto do Campo de Marte, em São Paulo. O avião sobrevoava a Zona Leste da cidade a 3700 pés de altitude. Acima de mim, o tráfego de Cumbica. Logo abaixo, os helicópteros.
Para os leigos em aviação, isso significa voar a cerca de 250 ou 300 metros de altura dos prédios, o que dá ao piloto menos de um minuto para resolver qualquer problema a bordo antes que a aeronave se choque contra algum obstáculo urbano.
O incidente, gravíssimo, foi determinado por uma falha prosaica, algo que não está previstos no manual da aeronave nem nos checklists: a inversão da posição do tubo de respiro de combustível que fica incrustado nas tampas dos tanques.
Como se pode ver na foto abaixo, o arranjo, praticamente uma gambiarra em forma de gancho inventada pelo fabricante para pressurizar as linhas de combustível, deve estar numa posição que permita que a extremidade do tubo de alumínio fique voltada para a frente, para o vento relativo. Com a aeronave em voo e a tampa na posição correta, o respiro gera duas atmosferas de pressão dentro do tanque, o que auxilia a descida da gasolina por gravidade até a bomba mecânica situada na parte dianteira do motor Rotax.
Agora repare no detalhe na foto seguinte. O tubo do respiro da asa direita está invertido, voltado para trás, para o bordo de fuga da asa. Isso gerou pressão negativa no tanque, fazendo com que, lentamente, o combustível migrasse da asa esquerda (onde havia pressão positiva em voo) para a direita, que “aspirava” a gasolina pela linha que interliga os taques.
Com a posição invertida em voo, ao longo de uma hora e meia, o combustível contido no tanque direito foi sendo drenado para a asa esquerda. Como o avião não tem fluxômetros confiáveis, só foi possível perceber o problema na chegada a São Paulo.
A dois minutos de distância do Itaquerão, já voando sobre área densamente povoada, liguei a bomba auxiliar e pedi à pessoa que me acompanhava que fechasse a válvula da asa esquerda temendo uma infiltração de ar. Já praticamente não havia mais vestígio de combustível naquele tanque. Desliguei a bomba elétrica 30 segundos depois e tudo parecia bem. Mas cinco minutos adiante, o motor simplesmente apagou em pleno voo quando acabou a reserva do tanque de glissagem.
Tomei um susto horrível. Gritei para a a minha passageira que abrisse a válvula que ela mesma fechara, o que aconteceu imediatamente. A posição dessa válvula é outra gambiarra. Ela fica atrás da cabeça do piloto e não pode ser vista. Se eu não estivesse acompanhado por alguém que já sabia onde ficava a válvula, provavelmente não haveria tempo de olhar para trás, abri-la e tentar restabelecer o funcionamento do motor.
Liguei a bomba auxiliar, que felizmente cumpriu seu mister e conseguiu restabelecer o fluxo de combustível na linha. A hélice, por pura sorte, ficou molinetando com o vento, e o motor pegou “no tranco” quando a gasolina chegou ao carburador.
Olhei para o altímetro. Havíamos perdido 500 pés, estávamos muito baixo. Dei plena potência e iniciei uma subida dinâmica para ganhar altura e assegurar uma rampa minimamente segura para alcançar a pista em caso de nova falha. Cheguei a tomar uma bronca do controlador que estava de plantão na torre de SBMT por ter invadido o espaço reservado aos helicópteros no centro nevrálgico da Terminal São Paulo.
Felizmente o motor funcionou redondo, e só foi preciso, por cautela, fazer um 180 na cabeceira 12 e encurtar a final. Apesar do meu nervosismo e do vento de través que antecipava a entrada de uma frente fria, o pouso foi seguro. Quado desliguei o motor, precisei ficar recostado no banco alguns minutos até que meus músculos parassem de tremer. Foi uma experiência horrível, grave e que precisava de uma explicação.
Consegui entender o problema e desvendar o que ocorreu quando chamei o abastecimento. Eu sempre costumo abrir os tanques para me certificar de que a tampa com o respiro não sofra uma avaria. A tampa precisa ser girada no sentido anti-horário por um alicate de bico.
Naquele dia, ao decolar para Angra dos Reis de manhã, não acompanhei pessoalmente essa operação. E a falta desse cuidado, que não está previsto no manual e nem recomendado nos checklists, quase determinou um acidente gravíssimo.
O abastecedor provavelmente tentou abrir a tampa girando o tubo de alumínio, que se rompeu na base. A peça é fraca e a fixação de sua posição na tampa, para que fique sempre virada para o bordo de ataque, é notadamente feita de improviso, certamente para baratear o custo de fabricação do Aerobravo 700.
As fotos acima são praticamente autoexplicativas. Com sua frágil base de fixação quebrada, o respiro, que tem o formato de um gancho, foi girado para trás pelo o vento relativo. Foi isso que fez com que o combustível fosse drenado no tanque esquerdo para o direito e determinou toda a sequência de eventos que por pouco não culmina com um acidente fatal.
Como se vê, morrer de acidente de avião pode ser muito fácil. Basta que o fabricante da aeronave adote o improviso como solução e descuide de avisar suas eventuais futuras vítimas dos pontos vulneráveis de seu projeto.
O Bravo 700 é um ultraleve avançado considerado seguro. Tem características de STOL, Pousa muito curto e decola em apenas 50 metros de pista. É uma das aeronaves mais baratas já produzidas no País (foram montadas quase 200 pela Aerobravo, cuja sede ficava em Belo Horizonte). É um aviãozinho arisco e ao mesmo tempo dócil. Exige do piloto muito mais pé e mão do que os clássicos de entrada da aviação homologada — os Tupis e os Cessnas.
Boa parte dos modelos que foram construídos é empregada no treinamento de novos pilotos. Daí a popularidade dessa pequena aeronave, que já formou milhares de aeronautas nos últimos anos. Mas é preciso reconhecer, para além das mistificações, que a necessidade imperiosa de reduzir custos para prover um avião barato ao mercado foi determinante para a criação de soluções heterodoxas como essa dos respiros.
Se você é proprietário, piloto, instrutor ou dono de escola, incorpore o cheque das tampas e respiros aos seus checklists. Faça com que os novos pilotos estejam alertas e conscientes de que o problema pode ocorrer a qualquer momento — basta que o abastecedor não resista à tentação de girar a rosca da tampa segurando pelo respiro.
Cuide-se. Sua vida está na dependência de uma peça malfeita como essa. Uma mera tampa de tanque, e um respiro inventado num momento de pouca responsabilidade por um construtor premido pela necessidade de economizar ao máximo é tudo o que você precisa para entrar para as funestas estatísticas de acidentes.